Diante de mim, um embrulho enorme gritava-me a urgência de ser aberto.
A minha euforia a rasgar o papel depressa desvendou o mistério do grande pacote e esbugalharam-se-me os olhos de espanto: um cartão reunia, presas por elásticos, miniaturas de todos os apetrechos de uma cozinha a sério: fogão, tachinhos e panelas, frigorífico, caixas, concha e escumadeira, pratos, talheres, mesa e outra parafernália complexa a prometer inúmeras horas de brincadeira.
Era assim que, sub-repticiamente através dos brinquedos, se começavam a preparar boas esposas que dominavam todos os segredos da cozinha e que ensaiavam as artes da puericultura com as suas bonecas. Sem preocupações na altura com a secundarização do papel social da mulher, tive alegrias sem fim na manipulação de todos aqueles apetrechos que me igualavam, supunha eu, à figura materna ou, se não a essa, pelo menos à da minha irmã mais velha, minha quase segunda mãe.
Fora um presente do menino Jesus. Os presentes do Natal eram então trazidos pelo menino Jesus. As cartas que escrevíamos eram-lhe dirigidas e era ele quem decidia se éramos ou não merecedores do que pedíamos. Olha que se não fores boa menina, o menino Jesus não te traz nada… com estas advertências nos ouvidos, quantas vezes não medi palavras e acções na esperança de que isso fosse reconhecido pelo menino lá em cima. Tarefa ingrata para um menino acabado de nascer: ficar com o peso nas suas costas, ainda frágeis, das decepções de tantos meninos do mundo inteiro; cruzar os céus nocturnos à mercê das intempéries do tempo e descer as chaminés chamuscadas de fuligem. Não me lembro em que altura o menino passou a ficar a noite inteira na manjedoura do presépio e foi deposto da sua tarefa de entregar presentes, pelo barbudo homem do Norte montado no seu trenó puxado pelas renas. Para os pequeninos a fantasia era a mesma. Os brinquedos passaram a electrónicos e as prendas sofisticaram-se. Os adultos, esses, gastavam o que não tinham (o cartão de crédito já tinha sido inventado!) para fazer jus ao consumismo que passou a caracterizar esta quadra. Dava-se porque se recebia e para se receber. Prendas para comprar afectos…
De qualquer modo isso foi muito depois.
Naquela manhã eu fui arrancada da agitação do sono pelo meu irmão que, bem cedo, atravessou comigo ao colo os cerca de duzentos metros gelados que separavam a casa da minha avó, onde eu dormira, da casa paterna onde todos vivíamos. Era frio e às vezes nevado o natal da minha infância. Ainda me lembro de acordar e ver a minha respiração transformada em gotículas de água a brilharem nos extremos dos cobertores de papa, de onde as reviravoltas da noite sempre acabavam por afastar a dobra do lençol. Era uma violência as crianças terem que esperar pela madrugada do dia 25 para desfazerem a ansiedade que os roía desde o dia em que tinham escrito a carta dos desejos endereçada ao menino Jesus. Mas era assim todos os anos. Despedidas para a cama quando a noite (aquecida pelo calor das braseiras e pelo fogo forte da lareira e perfumada pelo cheiro da canela nos fritos) ainda prometia conversas e afectos lá íamos nós convencidas de que o menino não viria enquanto não adormecêssemos. No negrume da noite ficava o enorme lenho de madeira que o meu pai queimava todos os anos, para aquecer o menino, dizia ele. E para lhe mostrar o caminho, pensava eu.
Ainda havia brasas na lareira quando, ao colo do meu irmão, cheguei para o momento da magia. É difícil hoje entender o que eu sentia nessa altura. Sentia-me parte de uma realidade encantada onde anjos auxiliares e um menino recém-nascido, a fazer o milagre de tantas aparições em todas as casas de todos os lugares do mundo, era uma certeza de maravilha inquestionável.
E foi com a saudade desse sentir mágico que, muitos anos mais tarde, respondi à inquietação aflita do meu filho “mãe os meus colegas dizem que não há Pai Natal” com uma singela resposta “enquanto a tua fantasia te permitir acreditar nele, ELE existe”.
Professora Irene Crespo
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